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Abertura. Amar e mudar as coisas me interessa mais.

Mesa em espiral – PalavrAção Quando mataram o amor?

 

Alana Braga Alencar 

(Mestranda na Universidade Federal do Ceará/Núcleo de Psicologia Comunitária - NUCOM)

 

Esse texto se inscreve por minhas an.danças, mas também é inspirado nos encontros com as ideias de Paulo Freire, Rolando Toro, Cezar Góis e Edgar Morin. Um texto talvez menos prosaico que poético, mas que busca o encontro do racional com o sensível.

Para escrevê-lo fui mobilizada pela pergunta: Quando mataram o amor?

A sociedade se estrutura em valores anti-vida de competição, individualismo, meritocracia, violência, medo, preconceito, institucionalização, normalização do cotidiano... gente cada vez menos viva, gente cada vez mais máquina.  Tudo isso tem muito valor dentro do estado organizado em função do modo de produção capitalista, tudo isso é muito produtivo para a sua economia... Porém , com isso, vamos aos poucos virando acessórios ou instrumentos do nosso próprio modo de vida.

 Um grande passo dado em direção a esse modo de vida se deu com o advento da idade moderna, onde se inaugurou o paradigma antropocêntrico no qual o homem é considerado o ser supremo por sua capacidade de razão, por isso é separado da natureza, que vira recurso material; é separado do outro homem que vira recurso humano e dentro dele mesmo é separado entre: razão e emoção, pensamento e sentimento, corpo e mente, objetivo e subjetivo e em sua própria espécie é separado em preto, branco, amarelo, vermelho, homem e mulher, homo e hétero, bi, cis, trans. E para cada um desses pedacinhos  é criado um instituição específica de gerenciamento e controle, separar e segregar para controlar.

 Isso nos levaria facilmente a crer que o amor pode estar morto... pois bem...duvido disso. Ao mesmo tempo e contra-hegemonicamente, ele esteve ali, persistindo nas fissuras do sistema, germinando onde havia solo propício, engendrando as contramolas. Brotando nas expressões de coletividade, sensibilidade, cooperação, com vivência, amorosidade, criatividade, no nosso por vezes doloridos e por vezes prazeroso  aprendizado primordial de  ser-com. Ser-com.

Contar uma história de quando começaram a matar o amor,  talvez seja uma grande loucura, assim como é falar do amor...bom que seja. Pois a loucura está bem mais próxima do afeto que a primazia da razão. Seria amar  mais fácil que falar de amor? Falar sobre amor é torná-lo um objeto. A fala sobre o amor é objetiva enquanto que a fala do amor é subjetiva, impossível falar do amor sem que o falante fale a si mesmo. Falar sobre o amor é coisificá-lo, falar com o meu amor, é mostrar-me para vocês e contemplá-los, me encontrar com vocês, ser-com vocês. Talvez começaram a matar o amor justamente quando começaram a falar sobre ele. As palavras e conceitos teriam alcance de definir seu mito?

 Desde o momento que cometeram sandice de definir a espécie humana como homo sapiens, como aquele dotado de razão e sabedoria, também começaram a matar o amor... Essa definição é como sindir a existência humana, pois ser homo implica ser igualmente demens, carregar consigo uma fonte permanente de delírio, de gozo, de cólera e de criação. Sapiens acredita que demens é desordem, caos, não é científico nem técnico. Porém, sem as “desordens” da afetividade, não haveria elo, criação, invenção, amor, poesia, arte... talvez nem crianças! Kkkk  Sapiens sempre quis controlar demens para exercer um pensamento racional, argumentado, crítico, prudente e comedido. Porém demens inspirava suas palavras à poesia e à revolução. Sapiens criou as tecnologias que levaram o homem à Lua, porém foi demens que nem precisou chegar perto fisicamente dela para enluarar o olhar de quem amava. Sapiens tem um impulso de esterelizar nossas vidas, demens quer nos jogar para a lama profunda e fértil de onde brota o lúmen da flor de lótus... e talvez tenhamos nos perdido no meio do caminho e precisemos aprender a dançar com sapiens e demens.

Quando nos assumirmos como homo sapiens-demens poderemos então caminhar para  um outro modelo societário. Assumir, por exemplo, a amorosidade como posicionamento político contra hegemônico baseado na convivência, no diálogo, no respeito, na ética coletiva, requer a coragem de caminhar com sapiens e demens.  Para ao mesmo tempo organizar com a razão as nossas noções de valores, de justiça e de ética que serão expressões do pulsar da nossa afetividade em com-vivência.  A amorosidade talvez seja a fonte da ética deste novo modo de ser, pois inauguraríamos um olhar renovado sobre as coisas... passaríamos de uma fundamentação de ações a partir somente da lógica da razão, onde somos sujeitos cognoscentes em um mundo cognoscível que existe fora de mim e que eu posso controlar: um mundo cheio de objetos a serem conhecidos, objetos que não fazem parte de mim, do meu eu, mas que eu tenho influência sobre...e passamos a um outro passo: quando olhamos para o mundo através de uma percepção amorosa, quando pudermos apagar um pouquinho a luz da razão e acender junto a ela a chama verde do coração sairemos do mundo de objetos para um mundo VIVO. Não seremos mais sujeitos cognoscentes em um mundo cognoscível, mas sujeitos sensíveis em um mundo sensível; sujeitos amorosos em um mundo vivo. E este mundo não estará mais separado de nós...aprenderemos por fim a ser-com. Ser-comigo mesmo, ser com o outro, ser com a ecologia, com o que transcende à minha percepção imediata.

Ser homo sapiens demens é sonhar em ação, é ter direito a agir e a delirar. Pois a realidade que vivemos hoje não se sustenta. Precisamos contruir o amanhã que queremos e a hora é hoje, a potência é o presente.

Para encerrar, gostaria de chamar Eduardo Galeano para a Roda.

DIREITO AO DELÍRIO - GALEANO

"Mesmo que não possamos adivinhar o tempo que virá, temos ao menos o direito de imaginar o que queremos que seja.

As Nações Unidas tem proclamado extensas listas de Direitos Humanos, mas a imensa maioria da humanidade não tem mais que os direitos de: ver, ouvir, calar.

Que tal começarmos a exercer o jamais proclamado direito de sonhar?

Que tal se delirarmos por um momentinho?

Ao fim do milênio vamos fixar os olhos mais para lá da infâmia para adivinhar outro mundo possível.

O ar vai estar limpo de todo veneno que não venha dos medos humanos e das paixões humanas.

As pessoas não serão dirigidas pelo automóvel, nem serão programadas pelo computador, nem serão compradas pelo supermercado, nem serão assistidas pela televisão.

A televisão deixará de ser o membro mais importante da família.

As pessoas trabalharão para viver em lugar de viver para trabalhar.

Se incorporará aos Códigos Penais o delito de estupidez que cometem os que vivem por ter ou ganhar ao invés de viver por viver somente, como canta o pássaro sem saber que canta e como brinca a criança sem saber que brinca.

Em nenhum país serão presos os rapazes que se neguem a cumprir serviço militar, mas sim os que queiram cumprir.

Os economistas não chamarão de nível de vida o nível de consumo, nem chamarão qualidade de vida à quantidade de coisas.

Os cozinheiros não pensarão que as lagostas gostam de ser fervidas vivas.

Os historiadores não acreditarão que os países adoram ser invadidos.O mundo já não estará em guerra contra os pobres, mas sim contra a pobreza.

E a indústria militar não terá outro remédio senão declarar-se quebrada.

A comida não será uma mercadoria nem a comunicação um negócio, porque a comida e a comunicação são direitos humanos.

Ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão.

As crianças de rua não serão tratadas como se fossem lixo, porque não haverá crianças de rua.

As crianças ricas não serão tratadas como se fossem dinheiro, porque não haverá crianças ricas.

A educação não será um privilégio de quem possa pagá-la e a polícia não será a maldição de quem não possa comprá-la.

A justiça e a liberdade, irmãs siamesas, condenadas a viver separadas, voltarão a juntar-se, voltarão a juntar-se bem de perto, costas com costas.

Na Argentina, as loucas da Praça de Maio serão um exemplo de saúde mental, porque elas se negaram a esquecer nos tempos de amnésia obrigatória.

A perfeição seguirá sendo o privilégio tedioso dos deuses, mas neste mundo, neste mundo avacalhado e maldito, cada noite será vivida como se fosse a última e cada dia como se fosse o primeiro.

Por que Amar e mudar as coisas nos interessa muito mais.

 

Gratidão!