X Encontro Regional de Estudantes de Psicologia – UFRN

15 de janeiro de 2015

Ana Karenina de Melo Arraes Amorim

(Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da UFRN)

 

Do amor fati em Nietzsche a amorosidade em Paulo Freire: por outras psicologias possíveis em tempos atuais (esse texto será reescrito em breve para posterior publicação em revista científica).

 

Ementa:

A Psicologia, hegemonicamente, é um saber que serve ao controle e opressão. Legitima modos de exploração e violência, assessora tortura, sufoca singularidades, rotula corpos. Ela é a disciplina convidada a compreender os corpos que fogem, que resistem, que “desviam”. E aos corpos que fogem, ela é convidada a assessorar o seu controle e domínio. A adaptação, resignação e submissão. Na ciência psicológica não há lugar para o afeto e a afetação? Prima-se pela neutralidade científica e distanciamento profissional. Na verdade, prima-se pelo afastamento da realidade e da possibilidade de indignação. Não há lugar para o amor. Mas a psicologia só pode ser assim?

 

·        Psicologia como ciência fundada no pensamento moderno – Nietzsche e as críticas ao pensamento platônico que fundam a modernidade...

Psicologia como ciência moderna nasce a serviço da burguesia e da sustentação de modos de ser que atendem ao capitalismo e aos valores burgueses como orientadores das vidas no século XIX e XX.  Teorias psicológicas, baseadas na interpretação do mundo socrático-platônico, sustentam a lógica disciplinar e de pretensa correção moral segundo valores que orientam o que deve ser a vida (e a reprodução da vida), a família (nuclear, patriarcal e heteroxessual), a ciência (dicotômica, baseada em ideiais de normalidade, neutralidade, previsibilidade e controle da natureza), a sociedade em geral marcada pela desigualdade e pela opressão e violência contra tudo o que desvia, difere e questiona tais valores.

 

·        Psicologia como ciência do espírito, daquilo que anima o corpo, das paixões converte-se modernamente em ciência da mente/razão, ou seja, ciência do amor sob controle

·        Nesta Psicologia, o amor como categoria modernamente perde o pathos, o elemento do inusitado, do excesso e torna-se o elemento que “sob controle” estrutura e organiza o homem como dever ser – razoável, normal, produtivo...

·        Nietzsche, como o “primeiro psicólogo” produziu outro chão de pensamento do qual a Psicologia moderna se distanciou e que, talvez, para construir outros modos de pensar, “outras psicologias” seja preciso retomar, dialogar com...

·        Daí que retomar uma certa concepção de amor e de crítica a esta categoria amor em Nietzsche possa nos ajudar no desafio de produzir novidade no pensamento:(citação, humano, demasiado humano, p. 10-11)

1.     Amor fati – amor ao presente, aquilo que acontece, mas não por obra divina” ou dádiva da natureza, como queriam os românticos. O amor ao que acontece por que se é forte e corajoso o suficiente para fazer do presente algo do que não se quer escapar... talvez este seja o maior desafio, dilema trágico, da humanidade... Estamos sendo dignos do que nos acontece? - nos pergunta Deleuze, inspirado em Nietzsche. O amor dos fortes é aquele em que não há lugar para culpas ou ressentimentos (isso é coisa dos fracos!). O amor que não se vinga por que faz acontecer no presente tudo aquilo de que a vida necessita, tudo aquilo que o meu corpo pede e isso nada tem haver com “fazer tudo o que se quer, independente do outro” (ou a plenitude do id, diria Freud). A vida pede a alteridade, o mundo. Tudo de que necessita a vida está no mundo, é mundo, é outro. A vida não necessita de algo para si mesma no individuo, mas no mundo, daí que o que ela necessita não pode ser contra ele (outro-mundo)... seria o avesso da barbárie dos tempos atuais em que “tudo quero, tudo controlo e tudo posso naquele que me enfraquece”, “tudo posso no aniquilamento da diferença”...a grande ilusão contemporânea.

 

2.     Desconfiança de todo amor piedoso –crítica ao cristianismo como vertor de disseminaçãodo pensamento platônico no mundo moderno ocidental e segundo o qual o homem precisa castrar-se  do mundo, retirar-se dele, para obter o “reino dos céus”... ou seja, o que o homem necessita está “fora do mundo”, está na transcendência inatingível e, para alcança-la deve-se abdicar das forças da vida, da criação da vida por que o único criador não está no homem e no mundo, mas no além mundo. Com base nessa crítica, ele desconfia de tudo aquilo que diz vir “desinteressadamente”, em nome do amor ao próximo, em sua face piedosa e caritativa que dá origem sempre a uma “dívida de amor” que precisa ser constantemente paga e cuja manutenção gera culpa em quem “deve” e ressentimento em que foi “caridoso”. Isso por que toda ação vem de um interesse e de uma necessidade, de uma ambição que faz parte do mundo e de onde pode construir a própria felicidade. O amor piedoso é o amor que desqualifica a politicidade da vida, nos cega para ela. O amor piedoso é aquele que não acredita na potência da vida mesma.

-         Daí que saúde seria a grande liberação do ressentimento...

 

·        Como essas idéias chegam até nós, nos tempos atuais?Se nos tempos de Nietzsche, a humanidade vivia o regime disciplinar, como diria Foucault, no qual sabíamos quem exercia o poder e para quem, poder que comandava a vida e oprimia em sua  centralidade, hierarquia e visibilidade. Também neste tempo, o amor romântico consistia em amar ideal que reproduzia os padrões estabelecidos para a “boa”família em seus modos previsíveis de ser e existir.

Hoje, vivemos a sociedade do controle (como nos disse Deleuze) em que as forças de controle da vida estão dispersas e em todo lugar, são sutis e invisíveis na maioria das vezes e exigem de nós outros modos de resistência, muito além dos movimentos macropolíticos de massa com os quais nos rebelamos contra o poder disciplinar. Hoje o biopoder captura nossos afetos, nossos modos de ser, de modo invisível e micropolítico. O amor converte-se, em sua liquidez, em mais um objeto de controle com o qual somos capturados sob o disfarce da “liberdade de escolher quem amar”. Não escolhemos. Estamos enredados nas malhas das redes sociais que, entre o voyeurismo e o exibicionismo, nos apresentam os amores possíveis... E entre o fortuito e o constante desvelo das ilusões amorosas, as formas de sofrimento psicológico se intensificam e ganham uma dispersão nunca antes vista... para cada doença, seu remédio e assim, as redes também apresentam as formulas de cura que são constantemente reinventadas e vistas como falidas em sua eficiência. E aí as psicologias são convidadas a comparecer, produzindo as “formulas de cura” para os males das (de) formações subjetivas atuais.  Formulas que tem sido produzidas sempre “despretensiosamente”, com base na piedosa ciência psi...mas também este conhecimento está em cheque, dada sua constante falência. E dessa mesma falência se nutrem as psicologias e o mercado de “auto-ajuda”.

Também neste contexto, assistimos as barbáries lá onde a força da palavra e dos acordos entre pessoas e nações também falha. Assistimos ao extermínio invisível” de vidas há muito marcadas para morrer no “ultracapitalismo” e suas exigências de mercado! Assim, são as vidas exterminadas em guerras e pelas epidemias que não a toa atingem apenas os cantos mais pobres do mundo... assim são exterminados diariamente nossos jovens negros e pobres nas periferias... vida nua, diria Agambem.

Neste contexto atual, talvez precisemos aprender ainda com Nietzsche que devemos desconfiar dos amores que nos chegam “desinteressadamente” por que já aprendemos que sempre se está a serviço de certas forças... mesmo que queiram nos fazer pensar diferente, toda psicologia é política e trabalha a serviço de certos interesses e forças...Mas a serviço de que fazemos psicologia nesses nossos tempos? Como nos posicionamos frente as opressões micropoliticamente colocadas traduzidas em formas mais diversas de controle e extermínio? Nos mantemos como quem não tem a ver com isso pois, afinal, somos aqueles que lidam piedosamente com o humano? A Psicologia que fazemos acontecer todos os dias nos confere o amor fati? Podemos afirmar a dignidade destes fazeres diante dos cenários que vivemos de tal modo que poderíamos fazer esta psicologia infinitamente? Estamos sendo dignos do que nos acontece, de tal modo implicados com tudo e cada coisa?

E diante dessas questões, encontro outro mestre que nos ensina ainda sobre a dignificação de nossas ações, nossos fazeres no mundo. Falo de Paulo Freire que nos traz a questão da Educação como Prática de Liberdade e cujos ensinamentos podem nos fazer pensar diversos saberes nas humanidades. Para trazer um pouco os caminhos que ele nos conduz para pensar esses dilemas éticos atuais, cito-o: “não há diálogo se não há profundo amor ao mundo e aos homens. Não é possível a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não há amor que o funda.”(Freire, 1987, p. 79/80). As práticas na educação, como na psicologia, estão perpassadas, necessariamente, pela afetividade, pela amorosidade e pela dialogicidade.  E aqui o sentido do amor/afeto remonta ao sentido grego de pathos, paixão, como envolvimento, respeito, implicação e comprometimento com o outro, com o mundo, com a diferença.  Ou seja, o amor aqui assume um sentido político. A politicidade do amor ou da amorosidade (para usar um termo freiriano) está justamente na defesa do diálogo e da necessidade de produção de resistências a tudo que a oprime a vida e gera desigualdades e injustiças sociais de qualquer ordem. O amor ao mundo e ao outro significa a luta diária para a produção de mais possibilidades de ser e existir para todos e cada um na terra e este sentido amplo do amor como categoria política que tem sido esvaziado de sentido nas práticas atuais.  Se é por esta via, dos afetos e dos espaços micropolíticos que o capitalismo tem mais investido e produzido novos modos de captura e produção de exploração o da vida, é precisamente por estes mesmos afetos e espaços micropolíticos que devemos resistir e buscar a produção de formas outras de experimentação da vida em sua potência.

É na pequenez das coisas da vida que devemos estar atentos. Os grande fenômenos nos tornam cegos a estas capturas invisíveis e sutis... e sem perde de vista obviamente, a dimensão macropolítica e das instituições que sustentam o nossos modos de viver em sociedade, que devemos parar um pouco, experimentar certas pausas nesse turbilhão do espaço-tempo ultrasônico que vivemos, e prestar atenção, reconhecer onde e como estamos sendo capturados, onde a vida se estrangula e produzir resistências pela via da amorosidade.

Quando falo em resistências pela via da amorosidade, não estou fazendo um convite para cada um individualmente buscar ser amoroso por que a amorosidade é condição da humanidade. Estou convidando a pensar como estamos vivendo esta amorosidade e a serviço de que estamos investindo nosso desejo no mundo.Esta reflexão é o fundamento da construção de resistências que só podem ser feitas coletivamente. Sim, coletivamente. Ou seja, nos espaços de dialogicidade e imanência do desejo de mundo, que faz com que cada um se comprometa com o mundo, na delicadeza de uma outra temporalidade que podemos fazer acontecer ou fazer “desacontecer” esta brutalidade consumista e individualista no tempo da repetição que estamos imersos, como nos disse rescentemente Eliane Brum.

Não acredito em outro tipo de Psicologia que não esta que produz suas práticas a serviço da construção desses espaços e tempos outros em que a delicadeza e a “pronúcia do mundo” sejam possíveis. E quem nos encaminha melhor por onde construir essas psicologias outras são os poetas por eles nos oferecem esse tempo de delicadeza, este exercício de atenção a pequenez daquilo que nos acontece para que possamos construir as resistências necessárias as opressões, como que nas asa de uma borboleta...

 

"A maior riqueza do homem é a sua incompletude.

Nesse ponto sou abastado.

Palavras que me aceitam como sou – eu não aceito.

Não agüento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc.
Perdoai


Mas eu preciso ser Outros.

Eu penso renovar o homem usando borboletas.”

(Manoel de Barros, Retratos do artista quando coisa)

 

Quem dera renovarmos a Psicologia usando borboletas politizadas!!