TEMA: Amar e Mudar as Coisas Interessa Mais
O QUE ENTENDEMOS POR AMOR COMO POLÍTICO?
Ao pensar no que propor como tema do próximo EREP NNe, achamos que não poderíamos deixar de lado o fato de esse anos estarmos construindo o décimo Encontro, celebrando a décima volta do espiral de encontrar-se que é o Erê. Passamos a buscar algo que nos dissesse desses anos de caminhar junto, do caminhar de outrxs antes de nós, do nosso, e de quem ainda virá, sem cair num raso e egocêntrico mero voltar-se a si sem propósito, e sem interromper o movimento de pautar como tema o que nos instiga, o que acreditamos e temos como princípios e ideias-força, e o que nos possibilite articulações coletivas e, para além de formação, transform(ação).
Essa construção foi complexa e desafiadora. Queremos propor um tema que consideramos que perpassa a história do EREP NNe, mesmo que em diferentes níveis, e de forma mais ou menos explícita, a Amorosidade enquanto posicionamento político. Não pretendemos aqui afirmar, de forma alguma, que todos os anos do movimento EREP NNe e todos os coletivos e pessoas que já o construíram compartilham da nossa proposta, nem que debatiam este tema. A Amorosidade aparece mais fortemente nos diálogos do coletivo apenas a partir de 2011, passando a fazer parte da Carta de Princípios em 2012, na Reunião Presencial da COEREP NNe, realizada na Vila do Estevão, Ceará. O que buscamos é afirmar nosso posicionamento de reverência à Amorosidade, e de defesa de que ela é presença no movimento em toda a sua história.
Percebemos que essa reverência ao amor, essa energia dos encontros e diálogos, esse modo de construção e encontração amorosa e visceral que perpassa os relatos de vivências, as lembranças, os reencontros e transforma os modos de existir e de organizar-se politicamente é, ao mesmo tempo, um dos aspectos mais potentes do movimento, que aproxima, articula, afeta e transforma, e também o principal motivo de críticas e deslegitimações destinadas ao EREP NNe, compondo fortemente as frequentes afirmações de sermos um movimento despolitizado, feito apenas de cirandas ou, como dizem, “cores, flores e amores”.
Paulo Freire, no livro Pedagogia do Oprimido (1987), nos alerta para a possibilidade de reações a essa postura, que consideram essa defesa um “blablablá de quem se “perde” falando em vocação ontológica, em amor, em diálogo, em esperança, em humildade, em simpatia” (p.13). Acolhemos e respeitamos as críticas, mas não reconhecemos essa afirmação como parte de nós. Pelo contrário, a Amorosidade é para nós um posicionamento político, parte de nossos princípios, das ideias-força que tecem nosso caminho no Movimento Estudantil e na defesa de outro modelo societário. Recebemos as referências às cirandas, às cores, flores e amores com satisfação, pois de fato valorizamos e defendemos alegria, a ancestralidade, a celebração, o sonho, a poesia, o afeto, a arte, a natureza e o amor, nos movimentos sociais e no mundo que construímos. Cirandar as cores, flores e amores em um mundo onde reinam o desamor, o asfalto e a solidão é, para nós, profundamente revolucionário.
Isso não significa dizer que negamos a existência de relações sociais destrutivas, violentas e opressoras, ou mesmo que negamos os conflitos e embates necessários para sua superação, mas que os modos de enfrentamento que acreditamos são orientados pela vida. Nesse momento trazemos as palavras-força de nossa companheira erepiana, Alana, que esclarece que a defesa da Amorosidade:
[...] não está relacionada à exigência de uma docilidade, de sujeitos passivos
que se vêem felizes com tudo e só encaram o “lado positivo” e otimista das
coisas, com uma ingenuidade alienada. Não. Aqui abrimos o peito e mostramos
um coração que sangra todos os dias pela injustiça do mundo e não negamos a
necessidade dos conflitos nas lutas cotidianas para a negação de um sistema
que oprime a maioria dos povos. Porém, entendemos que esses conflitos
devem ser orientados em função da vida e de seu valor sagrado, em função do
amor pela vida. (ALENCAR, 2011, p.47).
Essa é uma das incompreensões muito frequentes quando falamos de Amorosidade como posicionamento político, e que pretendemos diluir ao propor esse tema. É necessário demarcar que entendemos que a Amorosidade não somente se afasta de um posicionamento despolitizado, mas está visceralmente atrelada ao compromisso e implicação com a transformação social.
Há alguns caminhos teóricos possíveis para abordar o tema da Amorosidade como posicionamento político. Em nossos diálogos temos encontrado potência e ressonância nos percursos teóricos da Educação Biocêntrica, através da linha de vivencia da afetividade e da compreensão da vida como a referência do viver e, principalmente, nas proposições de Paulo Freire e construções da Educação Popular. É importante lembrar que, recentemente, a Amorosidade tem sido destaque em espaços de construção de políticas sociais através dos diálogos da Educação Popular, passando a figurar no âmbito do Sistema Único de Saúde como um dos princípios da Política Nacional de Educação Popular em Saúde, instituída em 19 de novembro de 2013, através da Portaria nº 2.761.
Compartilhamos da afirmação de Pérez Esquivel de que “amor é ação” (Toro, 1991, p.320 citado por Alencar, 2011, p.47). Como ela afirma, “o amor não é uma idéia abstrata, mas um trabalho concreto pelo que se ama, o que se postula como eticidade” ( p.47). Compreendemos, assim, que a Amorosidade é a fonte da ética, é o modo pelo qual o reconhecer-se nx outrx gera em mim a incapacidade de feri-lx, e também o compromisso com a transformação social. Para nós, as palavras de Paulo Freire (1987) resumem muito bem o que queremos propor, quando diz que “o ato de amor está em comprometer-se com sua causa. A causa da libertação” (p.45).
A Amorosidade para nós, assim, está presente no modo como acreditamos em outro modelo societário, outra forma de sociabilidade. E mais que isso, fundamenta nosso posicionamento pela importância da organização e mobilização para a superação e transformação estrutural de nosso modelo societário vigente. Compartilhando mais uma vez do pensamento de Freire (1987): “cada vez nos convencemos mais da necessidade de que os verdadeiros revolucionários reconheçam na revolução, porque um ato criador e libertador, um ato de amor” (p.45).
Propomos a Amorosidade como fonte desse compromisso. Além disso, para nós, ela está presente no modo como defendemos o organizar-se politicamente, sempre se pautando no profundo respeito e diálogo nos espaços de coletividades:
O diálogo não pode existir sem um profundo amor pelo mundo e pelo homens
Designar o mundo, que é ato de criação e de recriação, não é possível sem
estar impregnado de amor.
O amor é ao mesmo tempo o fundamento do diálogo e o próprio diálogo. Este
deve necessariamente unir sujeitos responsáveis e não pode existir numa
relação de dominação. [...] Porque o amor é um ato de valor, não de medo, ele
é compromisso para com os homens. (FREIRE, 1979 p.42).
Sabemos que esse é um posicionamento que quase não encontra acolhimento na maioria dos espaços, na Psicologia e na academia como um todo, pois como lembra Nise da Silveira, “a ciência, entrincheirada na ordem racional, não aceita esses caminhos. O ensino universitário impermeabilizou médicos e psicólogos para esse tipo de leitura” (Silveira, 1995, citada por Cruz, 2011, p.56). Entretanto, mantemos firme nosso posicionamento de reinvindicação desta reflexão. “Para nós a revolução, que não se faz sem teoria da revolução, portanto sem ciência, não tem nesta uma
inconciliação com o amor.” (Freire, 1987, p 45). Ainda:
Acredito em uma psicologia poética que me possibilita fazer vida, respeitando-a,
essa vida que está em todo e qualquer espaço. Uma psicologia teatral que
acolhe todos os estados vitais. Não psicologizando a vida, mas amando-a, num
ritmo envolvente como a música dionisíaca, as cirandas e as cantigas
populares. Que a arte preencha meu ser, habitando-me, amando-me e dando-
me força para potencializar, de maneira a transmitir ao mundo, um jeito de fazer
psicologia cada vez mais amoroso. (CRUZ, 2012, p.76).
E mesmo nos movimentos sociais e no Movimento Estudantil, percebemos que a construção coletiva nem sempre é orientada em favor da vida, com relações éticas e amorosas. Respeitamos todos os modos de organização, mas fazemos nossa escolha como postura política de libertação e transformação. Como afirma nossa companheira Alana, “tudo clama por transformação em nome da Vida. Como fazer essa tranformação? Essa resposta, muitos buscam... Eu sou uma. Acredito que o amor pode ser um dos caminhos” (Alencar, 2011, p.39).
Compartilhamos desse acreditar e propomos que este ano, enquanto movimento, vivenciemos a Amorosidade como idéia-força geradora no EREP NNe, em sua construção, e nas ações para o Encontro – encontrAções, fazendo referência a nosso querido Belchior, e tendo como tema: “Amar e mudar as coisas interessa mais”.
Referências
ALENCAR, A. B. (2011). Amor e Libertação: A Afetividade no processo de construção de sujeitos comunitários. Monografia de Conclusão de Curso (Graduação). Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Departamento de Psicologia.
BARROS, M. de (2002). Retrato do Artista Quando Coisa. 3ªed. Rio de Janeiro: Record.
BELO, R.P.N. (2010). Encontro Regional de Estudantes de Psicologia do Norte Nordeste: (des)caminhos de um movimento. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação). Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Faculdade de Psicologia.
COLETIVO REGIONAL DE ESTUDANTES DE PSICOLOGIA NORTE NORDESTE (2010). Carta de Princípios da COEREP NNe. COEREP NNe. Disponível em: https://erepnne.webnode.com.br/carta-de-principios/
CRUZ, N. N. (2012). OCUPA NISE: Narrativas de uma estudante de Psicologia no Hotel da Loucura. Monografia de Conclusão de Curso (Graduação). Universidade Tiradentes, Aracaju, Sergipe.
FREIRE. P. (1921) Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire / Paulo Freire; [tradução de Kátia de Mello e silva; revisão técnica de Benedito Eliseu Leite Cintra]. – São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.
FREIRE, P. (1987). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 17ª ed.